A Música para piano na Madeira
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Comércio e Manutenção dos Pianos

Paulo Esteireiro
Centro de Investigação e Documentação do
Gabinete Coordenador de Educação Artística

 

O piano tornou-se progressivamente uma fonte de enorme divertimento nas casas e nos convívios sociais, bem como um símbolo de estatuto para as famílias que tinham capacidade para os adquirir. Esta relação entre a posse de pianos e o prestígio social terá naturalmente conduzido ao aumento da procura de pianos, uma situação que criou novas oportunidades de negócio, tendo surgido ao longo do século XIX vários espaços a vender ou mesmo alugar pianos.

Numa primeira fase, entre 1840 e 1847, alguns dados recolhidos por Rui Magno Pinto no periódico O Defensor indicam que a compra e venda de pianos era feita principalmente entre particulares, como parece comprovar alguns anúncios nestes periódicos. Por exemplo, encontramos em 1841 várias referências a negócios entre particulares, quer de venda, quer de procurar para comprar. Em 20 de Março, o Sr. Roque Caetano Araújo procura «quem tiver um piano para vender»; poucos meses depois, a 8 de Maio, dá-se a situação inversa e um anunciante coloca «para vender um bom Piano». No mesmo ano, encontramos uma modalidade de negócio que viria a ser predominante na segunda metade do século XIX: o aluguer de pianos. Assim, em 23 de Outubro, aparece um anúncio para vender um piano e outro «para alugar».

Pouco tempo depois, já em 1842, encontramos vários anúncios que parecem indiciar um início de um mercado relativamente dinâmico. Por exemplo, em 22 e 29 de Outubro deste ano encontramos várias ofertas de piano, para vender e alugar, havendo alguns anúncios que disponibilizam mais do que um piano. Na «Casa n.º 7, Rua do Peru» anunciam que há «Pianos-forte»; «H. Freitas – Rua da Carreira» tem à venda um piano; por sua vez, a empresa «A. Halley Office, Rua dos Mercadores» tem também um piano-forte, embora para alugar. Mr. Innes, (outro comerciante pelo que me recordo) comercializou pianos em 1844. No ano seguinte, começam a surgir os primeiros anúncios de venda ou aluguer de pianos em língua inglesa no mesmo periódico, o que parece claramente indiciar o aumento de procura por estes instrumentos pela comunidade britânica. Mas não foi apenas a comunidade britânica que terá começado a procurar pianos. O aumento do mercado de compra e aluguer destes instrumentos na Madeira terá provavelmente sido possível devido às comunidades estrangeiras que desde meados do século XIX começaram a residir no Funchal, durante longas temporadas – meses e por vezes até anos – por motivos de saúde. Este turismo do século XIX, constituído principalmente por pessoas abastadas que tinham muito tempo para lazer no Funchal, terá certamente conduzido a uma maior procura destes instrumentos, como comprovam vários documentos da época.

Por exemplo, a britânica Ellen Taylor, no seu livro Madeira, Its Scenery and How to See it, diz que a sua família trouxe um piano de Inglaterra, mas que ficou arrependida de o ter trazido porque, no Funchal, Mr. Clairouin alugava bons pianos franceses por um bom preço (Taylor, 1882: 190). Por sua vez, o zoólogo James Johnson, no seu livro Madeira its climate and scenery, editado em 1885, também considera pertinente referir o nome de Cândido Henrique de Freitas como pessoa que aluga pianos na Rua das Murças (Johnson, 1885: xxviii), dois casos que indiciam que a possibilidade de aluguer de pianos era considerada uma informação importante para os visitantes estrangeiros da Madeira.

Outra causa também importante para o crescimento do mercado do piano na Madeira foi o enorme aumento da produção de pianos no plano europeu. A indústria doe construção de pianos melhorou bastante ao longo da segunda metade do século XIX, tendo havido um enorme aumento da capacidade de produção e de construtores a trabalhar neste mercado. Assim, se no início do século XIX o piano ainda era uma novidade, em meados do século as estatísticas da indústria de construção de pianos são bem demonstrativas. Em Paris, nesta altura havia cerca de 180 construtores de pianos, e estimava-se que existiriam 60000 instrumentos na capital francesa; em Inglaterra, os números eram ainda mais significativos, existindo 300 firmas de construção, que produziam cerca de 20000 instrumentos por ano (Rothstein, 1990: viii). Este fenómeno possibilitou naturalmente uma maior oferta de pianos e uma diminuição significativa dos preços deste bem, que conduziu à disseminação dos pianos pelas classes médias europeias. É certo que os países do sul da Europa, como Espanha, Itália e Portugal, que eram menos industrializados e tinham uma classe média alta de menor dimensão, produziam menos pianos e tendiam a importar os seus instrumentos da Alemanha, França e Inglaterra. Apesar disso, o aumento do número de pianos foi também muito significativo nos países do sul da Europa neste período (Loesser, 1990: 591).

O aumento do número de pianos no Funchal conduziu também ao aparecimento de uma nova profissão: o afinador de pianos. Se tivermos em consideração que os pianos actuais, construídos com tecnologias mais avançadas, necessitam constantemente de manutenção, então é fácil de concluir que os pianos de meados do século XIX precisavam de uma conservação ainda mais cuidada, para poderem ser regularmente utilizados. No caso particular da Madeira, a situação de manutenção dos pianos era agravada pela humidade elevada da ilha que fazia com que os pianos enferrujassem mais rapidamente e que requeressem frequentemente afinação, como é possível confirmar em relatos da época.

«pianofortes frequently require tuning; and the screws of various other instruments, as violins, guitars, etc., become so tight as to be almost immovable» (Bloxom, 1855: 45).

(«os pianos frequentemente requerem afinação, e os parafusos de vários outros instrumentos, como violinos, guitarras, etc, tornam-se tão apertados que quase já não se conseguem mover»)

Assim, é natural que desde muito cedo tivessem surgido afinadores de piano no Funchal. Em 1846, encontramos a primeira referência a esta profissão. Na acta da Sessão de 11 de Dezembro de 1846 do «Conselho de Direcção da Sociedade que mantem a Sala d'Asylo» agradece-se ao «Snr. Drolha [que] afinou gratuitamente o piano que servio no concerto» de beneficência para melhorar as instalações da citada escola (Menezes, 1849: 528-529). O Snr. Drolha era muito provavelmente o clarinetista Caetano Domingos Drolha, músico militar na década de 1820 em Lisboa, e um dos músicos virtuosos no Funchal que estava ligado à Sociedade Philarmonica criada em 1840 (Carita e Mello, 1988: 39).

A profissão de afinador aparecia também nos guias estrangeiros sobre a Madeira. Ellen Taylor, no seu guia sobre a Madeira acima citado, achava não apenas relevante apontar no seu livro uma pessoa que alugava pianos, como também o nome de um afinador de pianos madeirense, com a respectiva morada: «Nuno Rodriguez, 53, Rua Nova de São Pedro» (Taylor, 1882: 28).

Encontramos o próximo nome de afinador de pianos já em pleno século XX: João Graceliano Lino (1885-1963), um descendente de Nuno Rodriguez, apesar do nome não o transparecer, o que indica que a profissão poderá ter passado de geração em geração nesta família. Além de afinador, João Graceliano Lino era também contrabaixista, sendo referenciado por Luiz Peter Clode como «um exímio afinador de pianos, [que era] o afinador da Sociedade de Concertos da Madeira, tendo sido elogiado por vários pianistas de fama internacional que passaram pela Madeira» (Clode, 1983: 285).

No início do século XX, os pianos eram ainda responsáveis por um mercado forte sendo possível encontrar estes instrumentos em pelo menos nove Armazéns de Vendas de Piano, segundo uma contagem realizada pelo Visconde do Porto da Cruz, no seu livro Aspectos Agrícolas e Industriais da Madeira (Porto da Cruz, 1930: 83). Estes Armazéns além de pianos deveriam também vender partituras e outros tipos de instrumentos, como encontramos num anúncio de 1908 do Armazém Bazar do Povo, onde também facilitavam a compra de pianos a prestações ou ainda permitiam o regime de aluguer deste instrumento (Sarmento, 1908: [IV])):

A partir dos anos trinta e quarenta, o mercado do piano entrou em declínio no plano europeu. As lojas que vendiam os rádios e os gramofones começaram a desencorajar as famílias da prática de piano em casa, defendendo as vantagens destas novas tecnologias perante o piano (Loesser, 1990: 608). O piano manteve-se até aos nossos dias, mas o seu lugar no centro das casas foi substituído primeiramente pelos rádios e os gramofones, e actualmente pela televisão e as modernas aparelhagens de som.


 

BIBLIOGRAFIA CITADA

BLOXAM, James Mackenzie (1855). The Climate of the Island of Madeira. London: T. Richards.

CARITA, Rui e MELLO, Luís de Sousa (1988). 100 Anos do Teatro Municipal Baltazar Dias, Funchal.

CLODE, Luiz Peter (1983). Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses, sécs. XIX e XX. Funchal: Caixa Económica.

JOHNSON, James Yate (1885). Madeira Its Climate and Scenery: a Handbook for Invalid and Other Visitors. London: Dulau & Co.

LOESSER, Arthur (1990). Men, Women and Pianos: A Social History. New York: Dover.

MENEZES, Servulo Drummond de (1849). Uma Epoca Administrativa da Madeira e Porto Santo. Funchal: Typ. Nacional.

CUNHA, Alexandre Luís da, (ed.), O Defensor. Funchal: [s. n.], 1840-01-04 a 1847-05-18.

PORTO DA CRUZ, Visconde de (1930). Aspectos Agricolas e Industriais da Madeira. Funchal: Tip. “Diario da Madeira”.

ROTHSTEIN, Edward (1990). «Foreword» in Men, Women and Pianos: A Social History. New York: Dover.

SARMENTO, Alberto Arthur (1908). O Funchal : Quadricentenario da Elevação do Funchal á Cathegoria de Cidade 1508-1908. Funchal: Typ. do “Heraldo da Madeira”.

TAYLOR, Ellen M. (1882). Madeira, Its Scenery and how to See it. London: Edward Stanford.