As Sinfonias de Santa Cecília na Madeira

 

Tendo em consideração que Santa Cecília é a padroeira dos músicos, torna-se compreensível que, ao longo da história, os músicos lhe tenham dedicado várias composições. As primeiras referências à utilização de música festiva, no culto de Santa Cecília na Madeira, encontram-se num artigo do tenente-coronel Alberto Artur Sarmento, intitulado “Santa Cecília”. Neste texto, Sarmento indica que, em 1844, realizou-se na Igreja de Santa Clara uma festa dedicada a Santa Cecília, com grande pompa e afluência dos funchalenses. Como indica o próprio Sarmento, citando o periódico «O Imparcial», este evento terá sido organizado como uma resposta aos ataques liberalistas que a Igreja Católica vinha recebendo. Assim, a festa foi organizada para que «os amadores da música não deixassem de tomar parte na grandiosa luta, em que se achão empenhados quasi todos os bons Catholicos desta cidade afim de se opporem ao progresso da perfida heresia, que nos inquieta.» Deste modo, o culto a Santa Cecília e a utilização de música pomposa nos rituais religiosos foi uma das formas de resposta da Igreja aos fortes ataques políticos que recebeu, tendo vários compositores participado nesta luta e realizado composições para as festas religiosas.

No entanto, com excepção da cerimónia de 1844, descrita por Sarmento, não encontrámos nos periódicos religiosos da época de Nuno Lino e César Nascimento (Boletim Eclesiástico; Quinzena Religiosa da Ilha da Madeira; A Verdade) nenhuma informação que indicasse a existência de cerimónias com música festiva, no dia de Santa Cecília (22 de Novembro) ou nos domingos adjacentes. Assim, não existem provas de que as sinfonias aqui em estudo tenham sido compostas propositadamente para o dia de Santa Cecília, embora tal hipótese também não tenha sido refutada nesta investigação.

De qualquer modo, tendo em consideração os testemunhos directos de três gerações de músicos que tocaram sinfonias religiosas, estas obras eram interpretadas no início ou no final de missas festivas. Assim, apesar do título das composições, estas obras eram tocadas em qualquer missa festiva e não necessariamente no dia de Santa Cecília. Surge assim a hipótese destas sinfonias terem sido compostas para uma missa festiva, sem ser necessariamente para o dia de Santa Cecília. No entanto, tendo em consideração o nome atribuído às sinfonias, parece-nos mais provável que tenham sido compostas originalmente para o dia de Santa Cecília e posteriormente aproveitadas para outras cerimónias religiosas festivas.

Por outro lado, a hipótese das obras terem sido compostas para a paróquia de Santa Cecília, em Câmara de Lobos, é pouco credível. Além do facto dos dois compositores serem do Funchal, esta paróquia foi apenas criada em 1960, sendo a sua fundação muito posterior à composição das sinfonias.

Um aspecto interessante, é o facto de algumas destas sinfonias terem continuado a ser tocadas, durante várias décadas – mesmo depois do falecimento dos seus autores –, o que comprova o grande sucesso destas músicas na Madeira. Segundo o testemunho de alguns músicos, estas composições eram ainda interpretadas nas décadas de 80 e mesmo 90 do século passado, sendo tocadas nas missas festivas, principalmente no verão, quando se celebravam as festas religiosas locais. Os festeiros – grupo de indivíduos responsáveis por organizar as festas locais – pagavam aos músicos para tocarem nas missas, figurando normalmente no seu repertório, várias músicas instrumentais pomposas, onde se incluíam as sinfonias de Santa Cecília, que se tocavam no início ou no fim da missa.

Em suma, sabe-se que estas sinfonias integravam o repertório dos músicos para missas festivas, onde permaneceram durante várias décadas, ficando no entanto em aberto quando e para que situações foram compostas originalmente.

 

Breve caracterização estilística das sinfonias em estudo

Actualmente, quando se fala do género sinfonia, remete-se normalmente para a escola clássica de Viena, principalmente para as obras de Haydn, Mozart e Beethoven, que inspiraram a música instrumental ocidental dos séculos XIX e XX. As sinfonias vienenses eram normalmente obras de grande dimensão e com orquestrações bastante ricas, sendo constituídas geralmente por quatro andamentos.

As sinfonias madeirenses dedicadas a Santa Cecília têm pouca ligação a este modelo vienense, para além do facto de serem obras instrumentais. Deste modo, o termo sinfonia deve ser aqui entendido de um modo muito genérico, visto que deveria ser aplicado pelos compositores madeirenses, do século XIX e primeira metade do XX, a todas as obras que são exclusivamente orquestrais, um pouco como acontecia no início do género sinfonia, em Itália, quando o termo apenas remetia para obras orquestrais – em oposição às obras vocais –, sem uma estrutural formal determinada.

Aliás, estilisticamente, as sinfonias madeirenses denotam uma grande influência da música italiana dos séculos XVIII e XIX, como é possível concluir na breve caracterização que se segue:

(1) As sinfonias apresentam uma forte veia lírica e melódica, com momentos de algum virtuosismo e elevada ornamentação, que normalmente é acompanhada por uma textura bastante ligeira e clara, sem momentos contrapontísticos relevantes ou outro tipo de texturas mais densas;

(2) As harmonias são tonais e pouco complexas, não existindo momentos musicais de grande tensão harmónica ou ambíguos tonalmente;

(3) O dispositivo instrumental é comandado pelo violino e pela flauta, havendo pouca variedade tímbrica, numa orquestra religiosa que normalmente era constituída por 1 flauta, 2 violinos, 1 violoncelo, 1 contrabaixo e órgão de tubos;

(4) Os ritmos seguem uma lógica de quadratura e simetria, não havendo momentos rítmicos complexos ou assimétricos;

(5) No plano estético, as sinfonias apresentam um carácter mais festivo do que propriamente religioso ou místico; em alguns momentos, inclusivamente, o arranjo que é feito para este agrupamento instrumental parece funcionar igualmente para uma marcha festiva de uma banda filarmónica;

(6) No plano formal, as composições não seguem rigidamente a forma sonata clássica, nem nenhuma forma padrão, optando os compositores por criar uma sucessão de secções musicais, contrastantes entre si no plano tonal e no plano temático. Este esquema formal, pode ser observado na sinfonia composta por Nuno Lino, que apresentamos no seguinte Quadro.

 

Quadro – Esquema formal da Sinfonia de Nuno Lino

Secção

Introdução

A

B

Ponte

C

C'

Ponte

B

Coda

Compassos

1-8

9-26

27-44

44-55

56-75

76-91

92-100

101-117

118- 139

Tonalidade

Ré Maior

Si Menor

Ré Maior

Modulação

Si b Maior

Si b Maior

Modulação

Ré Maior

Ré Maior